A corrente de ouro rompida: Como uma tradição é perdida

André Otávio Assis Muniz

I. Introdução

Tratar de como uma tradição é perdida ou por qual modo não mais há a transmissão de um ensinamento ou de poderes tradicionais, é tema complexo e bastante controverso. Para uma completa apreciação do tema, é necessária a compreensão adequada da terminologia empregada e dos conceitos envolvidos. O presente texto é apenas um sumário, um resumo que tem por objetivo a demonstração de ideias fundamentais sobre o tema.

II. Tradição e tradições

A palavra “tradição” deriva de “tradere”, transmitir. Sendo assim, tradição é algo transmitido desde um tempo imemorial. Ainda que certas formas sejam reconhecíveis como próprias de um período histórico determinado, ou que sejam conhecidas as personalidades que fizeram parte dessa transmissão, as raízes de tais ensinamentos, suas características fundamentais e essenciais se perdem na noite dos tempos tendo uma origem supra-humana, intangível, metafísica.

Deve ficar claro que só pode ser legitimamente tradicional o que, sendo transmitido no tempo, está além do tempo, tendo em vista que a criação de algo determina que aquilo que é criado não tenha sido transmitido desde sempre.

Dito isso, podemos concluir que é impossível se criar uma tradição legítima ou ainda se denominar como “tradicional” a algo que foi, em essência, ou seja, em seus fundamentos últimos, inventado e transmitido por alguém, ainda que se trate de uma invenção muito antiga.

As formas tradicionais são invólucros tangíveis da Tradição e só podem ser classificadas como legitimamente tradicionais se assim forem.

A Tradição é una, como não poderia deixar de ser, tendo em vista que a Verdade Absoluta é uma só. Não pode haver um “absoluto” que comporte quaisquer relatividades ou inconsistências. No entanto, essa mesma Verdade Absoluta se manifesta na história humana em conformidade com o próprio estado humano, ou seja, condicionado e limitado. Sendo assim, a Tradição se manifesta, mais ou menos plena, em formas tradicionais que são condicionadas ao tempo, ao espaço e às demais vicissitudes humanas. Disso podemos concluir que as tradições, de forma mais ou menos limitada, manifestam a Tradição.

Nas linhagens legitimamente tradicionais, onde são conhecidas as origens históricas formais e as personagens envolvidas na transmissão, é preciso ter bem claras as diferenças entre aquilo que se originou nos costumes de um dado período histórico em uma determinada região geográfica e aquilo que é legitimamente tradicional, ou seja, o que não depende da forma ou das vicissitudes para existir.

Em outras palavras, aquilo que é legitimamente tradicional é perene e universalmente válido. Não está atrelado a uma determinada forma dada ou a um tempo específico. Tradição não é passado, não é o mesmo que conservadorismo da forma, saudosismo etc.

III. Transmissão e linhagens

Denomina-se comumente de “linhagem” a uma determinada sequência de transmissores de um ensinamento ou de poderes tradicionais.

Detentores de uma linhagem são indivíduos que absorveram completamente os ensinamentos de uma determinada tradição e, portanto, estão aptos a transmiti-la. Essa absorção não é meramente o acúmulo de teorias, mas a transformação completa da individualidade em acordo com os ensinamentos daquela tradição. Nesse sentido, há uma transformação do que é meramente individual e particular em algo que participa da universalidade característica da Tradição. De fato, a originalidade e as particularidades do indivíduo são ofuscadas pela força do que é absoluto.

O indivíduo se torna, por assim dizer, um elo da “aurea catena” (corrente de ouro), que conecta à Fonte Absoluta, a Verdade e a Sabedoria em todo seu esplendor.

Aqui deve ficar claro um ponto: Um rito qualquer, um título dado, uma certificação por escrito (diploma, patente) que nomeie a alguém como detentor de uma linhagem não é suficiente, em si mesmo, para validar o fato.  O rito e os documentos são maneiras de se proclamar e de se dotar de poder a um determinado indivíduo que se tornou um porta-voz daquela tradição diante de uma comunidade. O indivíduo deve ter se tornado a personificação de uma tradição para que haja validade em sua proclamação como um detentor da linhagem. Não é o rito que confere essa condição, nem o diploma, nem um grau formal.

As influências espirituais de um rito precisam encontrar recipiendários adequados para a produção de seus frutos. Lançar sementes no concreto ou no ácido não trarão brotos.

Diferentemente de quando o indivíduo recebe graus iniciais ou intermediários de maneira ritual para, depois, tomar posse efetiva desse grau com sua interiorização e prática, a proclamação de alguém como sendo um chefe tradicional ou um representante da tradição, detentor da linhagem, é o reconhecimento de que, de fato, toda uma cadeia de ensinamentos está concentrada em um indivíduo e que, portanto, é dever dos que se vinculam a esta tradição segui-lo e obedecê-lo. O conteúdo de um rito nesse sentido é o de desenvolver e efetivar seu poder como chefe tradicional, ou seja, colocar em ato tudo aquilo que já traz em si como potência.

O indivíduo recebe o poder porque é grande, não é grande por ter recebido poder.

Não se invertam as coisas! Uma das marcas mais evidentes de decadência espiritual é a concessão de graus e poderes a indivíduos sem qualificação para tal. No caso de chefias tradicionais, a situação se torna ainda mais grave por “envenenar a nascente”.

Apenas o conhecimento teórico, cerebral, não é suficiente para se considerar que alguém é detentor de uma linhagem tradicional. Para conhecer de fato a validade de uma tradição é preciso vivenciá-la de maneira completa, com todo o seu ser, de maneira que não haja discrepância entre o que é individual e o que ensina aquela tradição. Dessa forma, o detentor legítimo pode tirar de si mesmo, de sua própria vida e experiência, exemplos e ensinamentos que estão em completo acordo com a tradição e adaptá-los às inumeráveis e sempre mutantes circunstâncias da vida real cotidiana. Em sânscrito, a palavra para mestre é “acárya” (pronuncia-se atchária), ou seja, aquele que ensina por acára(pronuncia-se atchára), pela prática e pelo exemplo de conduta.

A vivência em acordo com os ensinamentos tradicionais é essencial para que haja a completa absorção e o profundo conhecimento dos mesmos. Os pensamentos influenciam os atos e os atos influenciam os pensamentos. Não há separação entre mente e corpo, entre pensamento e conduta. A vida intelectual verdadeira, em sua mais alta acepção, não é outra coisa que a própria vida espiritual.

O poder de transmitir uma tradição depende de diversos fatores. Pode haver transmissões parciais e também transmissões coletivas e, igualmente, todas podem ser perdidas com a ruptura das linhagens.

  1. Transmissão individual e transmissão coletiva

A transmissão individual se opera pela correta e completa absorção de uma tradição por parte de um indivíduo que, assim, se torna apto a transmiti-la a outrem, numa cadeia de sucessão do tipo “mestre-discípulo”. Em geral, transmissões tradicionais religiosas seguem esse padrão. Já no caso da Maçonaria, por exemplo, temos uma transmissão coletiva que é conferida por mandato.

Tomando como exemplo a Igreja Católica Romana e as Igrejas Ortodoxas Orientais, temos a transmissão do poder sacerdotal e do depósito da fé através da formação teológica e da imposição das mãos que, através de rito CORRETO, ou seja, que não comporte ensinamentos desviados, confere a autoridade sacramental, o poder de santificar, ensinar e governar a igreja. O candidato a receber tal transmissão, conferida pelo sacramento da Ordem, deve ser preparado para que se torne um vaso adequado às influências espirituais que receberá.

No caso da Maçonaria, uma assembleia de maçons, regularmente iniciados e constituídos em uma Loja, ou seja, em uma comunidade onde se praticam os ritos maçônicos, transmitem a condição de maçom, ou seja, a Iniciação, a um indivíduo que não tem essa condição (o “profano”). Essa transmissão coletiva, tendo em vista que se dá sem uma série de elementos presentes na transmissão individual (convivência entre mestre e discípulo, avaliação de circunstâncias particulares do discípulo, formação prévia, a supervisão próxima sobre a conduta do iniciado etc.), dá-se, quase que exclusivamente, através do rito.

A preparação prévia do candidato é substituída pela chamada “sindicância”, ou seja, pela verificação das condições do indivíduo em se tornar receptor da iniciação.

A validade dos ritos depende de alguns fatores , tanto em um caso quanto em outro.

No caso das transmissões individuais, a utilização do rito é variável. De acordo com os Evangelhos, Jesus não praticou nenhum “rito” propriamente dito para a transmissão do poder de santificar, ensinar e governar a Igreja. Da mesma forma, a imposição das mãos por parte dos apóstolos, ao que tudo indica, não seguia um padrão pré-definido e uniforme. A maior relevância estava na correta transmissão do “depósito da fé” e na doutrina recebida e transmitida pelos apóstolos. O poder apostólico é dependente disso.

Ao longo dos séculos, as diversas igrejas foram desenvolvendo ritos diferentes para a transmissão do poder sacerdotal e do depósito da fé. De fato, na Igreja Oriental, por exemplo, observam-se as diferenças entre os ritos Bizantino, Copta, Siríaco, Armênio, Etíope etc., enquanto na Igreja Latina há o rito Romano (Tridentino), Ambrosiano, Hierosolimitano (Carmelita), Galicano, Monástico etc. O importante é que nenhum desses ritos contenha elementos que desviem ou desnaturem a tradição transmitida pois, nesse caso, a ordenação estaria invalidada.

Da mesma maneira, um rito de ordenação pode ser completamente invalidado se não houver a intenção correta por parte do ordenante ou do ordenado.

Mesmo alguém validamente ordenado pode perder todos os seus poderes e ser reduzido ao estado de leigo se quebrar seus vínculos interiores com a doutrina transmitida.

Cabe aqui lembrar que o bispo, aquele que tem o poder de ordenar nas igrejas cristãs tradicionais, tem papel similar ao do “detentor da linhagem”, ou seja, deve ser, ipso facto, a personificação dos ensinamentos de sua tradição.  A validade de seu poder episcopal depende da guarda da tradição. Bispo herege não é bispo, independentemente de ter recebido a ordenação ritual de forma válida.

No caso de certas tradições orientais como o Hinduísmo e o Budismo, a forma da transmissão varia muito de acordo com o mestre, mas, uma vez mais, a ênfase se encontra na correta intenção e na correta transmissão da doutrina tradicional. Falar em “detentor da linhagem” com desvio da doutrina correta, com base meramente na participação de um ritual, é o mesmo que dizer que alguém se tornou monge por ter encenado uma tonsura monástica numa peça de teatro.

No caso de transmissão coletiva, como é o caso da Maçonaria, a validade de uma Iniciação repousa na correta intenção do candidato, na condição maçônica efetiva dos oficiais no rito de iniciação, na correta intenção da assembleia (a Loja) e na correta execução do rito, ou seja, que ele contenha todos os símbolos e narrativas essenciais para a transmissão da doutrina a ser transmitida. Da mesma forma que no caso anterior, ninguém se torna maçom por participar de uma encenação onde se realiza um simulacro de iniciação, mesmo que o simulacro siga os detalhes do ritual real.

  1. Transmissão completa e transmissão parcial

Elementos de uma determinada tradição são comumente transmitidos de maneira parcial e gradual. A transmissão completa de todos os elementos componentes de uma tradição é um trabalho para ser concluído em anos de dedicação e esforço.

As iniciações menores, preliminares ou os sacramentos e ordenações que não conferem ao recipiendário o reconhecimento e o poder de ser um detentor da linhagem são exemplos dessas transmissões parciais.

Uma parcela de conhecimento e de poder é transmitida, mas ela não confere ao receptor o domínio do todo. Longe disso.

Nas igrejas cristãs tradicionais, os clérigos de Ordens Menores (Ostiário, Leitor, Acólito e Exorcista) e os três primeiros graus das Ordens Maiores (Subdiácono, Diácono e Presbítero) não são tidos como “detentores” do poder apostólico, mas sim participantes dele através de sua ligação com o bispo (plenitude da Ordem). Sendo assim, pode-se dizer que receberam uma transmissão parcial da tradição.

Da mesma forma no Budismo, os diversos graus representados na comunidade monástica, indicam essa jornada rumo a uma transmissão completa que se dá lentamente através de transmissões parciais progressivas.

Os graus efetivos da Iniciação são, em si mesmo, inumeráveis. Os graus demonstram as etapas no caminho e, portanto, revelam partes da totalidade representada por uma tradição.

“os graus intermediários da Iniciação podem ser até mesmo em multiplicidade indefinida, e deve ficar claro que os graus que existem em uma Organização Iniciática não constituem senão uma espécie de classificação mais ou menos genérica e “esquemática”, limitada à consideração de certas etapas principais ou mais claramente definidas, o que, por outro lado, explica a diversidade destas classificações. É também evidente que, mesmo quando uma Organização Iniciática, por uma razão qualquer de “método”, não confere graus claramente diferentes e demarcados por ritos particulares a cada um (dos graus), isso não impede que as mesmas fases (iniciáticas) existam obrigatoriamente para quem esteja vinculado a tal organização, ao menos quando passam à Iniciação Efetiva, pois não há nenhum método que permita alcançar diretamente o Objetivo.” (René Guénon  – Estudos Tradicionais,  setembro de 1950)

No caso da chamada transmissão coletiva, a detenção do conjunto de ensinamentos pertence à comunidade dos iniciados do mais alto grau, cuja função é resguardar as formas e doutrinas corretas a serem transmitidas. Tendo cada iniciado do mais alto grau recebido uma transmissão completa, mas não podendo individualmente transmiti-la de maneira regular, pela própria natureza coletiva dessa transmissão, deve resguardar os elementos da tradição para que a comunidade possa transmiti-la grau a grau, sem alterações essenciais na tradição.

  1. Os modos de transmissão no tempo e no espaço

Tratar de ensinamentos tradicionais é tratar de questões metafísicas que podem ser especialmente complexas ao homem moderno.

Quando falamos sobre a ideia de transmitir uma tradição, imediatamente associamos tal ideia  a uma relação pessoal, a encontros ou à convivência estreita e, de fato, essa é a forma mais comum, mais natural e mais desejável. No entanto, no mundo da Tradição, não é a única maneira.

Não devemos nos esquecer que a fonte da Tradição é perene e, portanto, pode manifestar-se onde e como quiser. A questão “tempo-espaço” é importante para nós, no mundo condicionado. No entanto, a “Tradição”, a “Sabedoria Perene”, está além dessas limitações.

Nas diversas tradições não são raros os exemplos de cadeias de transmissão onde há lapsos enormes de tempo e de espaço. Mestres e discípulos que nunca se encontraram pessoalmente e que nasceram e morreram com séculos de distância e em países longínquos.

Quando se fala na “aurea catena”, ou seja, da cadeia de ouro que, simbolicamente, conecta através de seus elos à fonte da Tradição, frequentemente nos deparamos com sucessores de mestres que receberam sua autoridade de maneira bem pouco usual. Tomemos um exemplo relativamente bem conhecido na história: Marsílio Ficino.

Marsílio Ficino nasceu próximo de Florença no ano de 1433, era médico e um estudioso aficionado por línguas que, graças a isso, foi notado pelo governante de fato da república florentina, Cosme de Médici. Ficino estudou grego e filosofia e, por isso, foi patrocinado por Cosme de Médici para traduzir do grego a obra de Platão. Nesse tempo, chegou às mãos do poderoso Médici, uma cópia em grego do “Corpus Hermeticus”, obra que, na sua visão, poderia revelar conhecimentos nunca antes conhecidos no Ocidente cristão. Cosme ordenou que Ficino parasse a tradução da obra de Platão e se dedicasse totalmente à tradução dos ensinamentos herméticos.

Ficino traduziu o “Corpus Hermeticus” e na sequência traduziu diversos autores neoplatônicos como Plotino, Porfírio, Jâmblico e outras obras como os “Hinos Órficos”. As traduções de Ficino são obras primas de precisão e, de fato, ele sentia a presença daqueles sábios a um tal ponto que se identificou com cada um dos ensinamentos contidos naquelas obras. Depois de 12 séculos, Ficino restaurou o costume comum entre os neoplatônicos da época de Plotino de celebrar o natalício de Platão com um banquete frugal.

Ficino era sacerdote católico romano e se esforçou muito para sintetizar a sabedoria dos antigos com o cristianismo católico romano. Sentia e afirmava que era a própria Providência Divina que o tinha destinado a ser o transmissor dessa Sabedoria Oculta. Em acordo com o pensamento tradicional da existência de uma “Sabedoria Perene”, defendia que a Verdade Universal fora transmitida sob várias roupagens através das eras e dos lugares e que tal Verdade se manifestava na vida e no pensamento de cada um dos Grandes Sábios e transmissores da Tradição, formando uma cadeia contínua de sucessão: a “aurea catena”.

Ficino sentia-se, obviamente, parte dessa corrente de ouro e, portanto, um legítimo sucessor de Zoroastro, Hermes Trismegisto, Orfeu, Pitágoras, Platão e Plotino.

Plotino faleceu em 270 da Era Comum e Ficino nasceu em 1433 da mesma Era Comum. Os dois estavam separados por “apenas” 1163 anos e, no entanto, podemos dizer que, sem sombra de dúvida, Ficino foi um sucessor e discípulo de Plotino.

Note-se aqui que a sucessão e a detenção da linhagem original dos ensinamentos por parte Ficino não dependeu de um rito que a legitimasse, tendo em vista a evidência notória da autoridade dele sobre as doutrinas herméticas e sua completa personificação das mesmas. Nesse caso, o rito tornou-se completamente dispensável, tendo em vista o contato direto com a Fonte, manifestado por certas experiências vividas por Ficino à semelhança de Plotino.

Outro exemplo que podemos utilizar de uma famosa iniciação sem qualquer rito foi a do chamado “Príncipe dos Teósofos” e “Teósofo Teutônico”, Jacob Boehme.

Jacob Boehme nasceu na Alemanha, perto da cidade de Görlitz, numa aldeia chamada Alt Seidenberg, na região conhecida como Lusatia Superior. Corria o ano de 1575 da Era Comum. A família era proprietária de terras, mas Jacob foi considerado fraco para a dura lida do campo e, por isso, aos 14 anos, depois de frequentar a escola de Alt Seidenberg, tornou-se aprendiz de sapateiro. Em 1599 foi admitido na guilda dos sapateiros como mestre-artífice e tornou-se oficialmente cidadão de Görlitz.

Boehme era um leitor voraz e profundamente interessado em religião, alquimia, hermetismo etc. Em 1600, Martim Moller, cidadão destacado de Görlitz, organizou um grupo de estudos na Paróquia Luterana local, que na prática era um tipo de irmandade chamada de “Conventículo dos Servidores Reais de Deus”, ao qual Jacob Boehme foi convidado a juntar-se. Teve uma série de visões interiores, entre elas uma em que viu os raios de sol sendo refletidos em um jarro de estanho e sentiu que aquilo representava a Iluminação mística, na qual a alma limpa refletia a Luz Divina. Tal visão foi um marco em sua busca pelos mistérios ocultos da natureza.

Durante o tempo de sua aprendizagem, quando seu mestre estava ausente na sapataria onde era aprendiz, viu entrar um homem estrangeiro, muito bem vestido, apesar da simplicidade e austeridade das vestes. O homem tinha um aspecto venerável e escolheu um determinado par de sapatos sobre o qual perguntou o preço. Boehme, julgando-se inepto para colocar um preço nos produtos na ausência de seu mestre, colocou um alto valor na certeza de que o homem recusaria e ele não seria repreendido por seu mestre. O estrangeiro, no entanto, pagou o valor sem sequer tentar pechinchar, afastando-se em seguida. Após dar alguns passos para fora da sapataria voltou-se e com voz alta e firme exclamou: “Jacob! Venha cá!”.  Boehme, a princípio, ficou assombrado com o fato do homem chamá-lo pelo nome de batismo, no entanto, passado o susto inicial, decidiu atendê-lo. O homem, do lado de fora, com ar sério e ao mesmo tempo muito cortês, disse-lhe: “Jacob, você é ainda muito pequeno, ou pouca coisa, mas você será grande e se tornará outro homem, e será objeto da admiração de todos. Isto porque você é piedoso, crê em Deus e reverencia Sua palavra, acima de tudo. Leia cuidadosamente as santas Escrituras, nas quais você encontrará consolação e instrução, pois você sofrerá muito; terá de suportar a pobreza, a miséria e as perseguições; mas seja corajoso e perseverante, pois Deus o ama e é bom para você.” Em seguida, o homem fixou-o profundamente nos olhos, apertou-lhe a mão e se foi, sem deixar qualquer indício. Boehme dizia que a fisionomia daquele homem sempre pairava diante de seus olhos.

A extrema simplicidade e informalidade de tal Iniciação revela um contraste imenso com as pompas, apetrechos, cerimônias etc., das quais hoje em dia tantos pseudo-iniciados fazem questão. Pompas vazias, sem nenhuma substância real.

O pensamento de Boehme faz eco aos ensinamentos de outros sábios, entre eles o próprio Ficino, dos quais, com toda certeza, Boehme tornou-se um digno sucessor e, por sua vez, Louis Claude de Saint-Martin, chamado de “Filósofo Desconhecido” nascido em Amboise, na França, no ano de 1743, é considerado discípulo e sucessor de Jacob Boehme, falecido em 1624, 119 anos antes, em Görlitz, na Alemanha.

Como vimos, a sucessão e a detenção de uma linhagem tradicional não está condicionada ao padrão comum, material e profano ao qual estamos habituados.

VII. Ruptura de linhagem, quebra de sucessão e perda de vínculos tradicionais

Tendo discorrido sobre os elementos fundamentais da Tradição e das tradições, as linhagens e a sua perpetuação, passemos agora a tratar sobre o que seja a ruptura de uma linhagem, a quebra de uma sucessão e a perda de vínculos tradicionais.

Quando uma determinada instituição, ordem, sociedade, comunidade etc., que é depositária legítima de uma tradição, proclama, propaga, transmite, seja através do ensino direto, seja através da distorção na interpretação, seja através da modificação dos elementos contidos nos ritos e mitos dos quais é depositária, ensinamentos novos, desviados do que foi transmitido ao longo dos séculos, não baseados nos ensinamentos basilares originais e não apoiados pela honesta e lógica exegese desses ensinamentos, perde sua vinculação com a tradição que diz representar.

Da mesma forma, deixam de ser portadores de uma linhagem tradicional e de uma sucessão tradicional aqueles que defendem condutas, pensamentos e doutrinas consideradas desviadas pelas fontes escriturísticas e pelos registros autorizados de uma tradição. Quando isso acontece, ainda que se mantenham formalidades exteriores, que haja a posse de locais ligados àquela tradição (templos, sítios históricos, locais de reunião etc.) e que se alegue uma continuidade histórica qualquer, não subsistem mais vínculos espirituais reais.

É preciso ressaltar que quando falamos aqui em “instituições” tradicionais, não estamos nos referindo somente a organismos com estatutos, normas ou formalidades legais próprias aos institutos civilmente constituídos, mas sim à toda comunidade que seja depositária de um legado autenticamente tradicional onde se encontrem portadores de uma linhagem qualquer, ainda que não haja qualquer formalidade exterior.

No caso de instituições com poder centralizado, a aderência dos portadores de linhagem aos ensinamentos desviados, emanados da autoridade central, é a própria ruptura dos vínculos tradicionais de cada um em particular.

Tomemos alguns exemplos hipotéticos para compreender a ruptura com a Tradição:

1 – Uma igreja cristã tradicional cujo chefe, um papa ou patriarca, adere publicamente a um ensinamento desviado e torna tal ensinamento “oficial”. Todos os bispos que aceitam esse ensinamento desviado rompem com os vínculos tradicionais de sua própria sucessão. Somente permanecerão verdadeiramente detentores da sucessão aqueles que negarem a adesão ao ensinamento desviado.

2 – Uma Potência Maçônica que nega um princípio universal da tradição maçônica, por exemplo, o sigilo dos sinais rituais, e começa a fazer reuniões ritualísticas completas com a presença de não-iniciados e de portas abertas. Todo maçom com a plenitude de conhecimento e de grau necessários que aceitar essa postura, está rompendo seus vínculos com a tradição maçônica.

3 – Um sistema ritualístico que altera de forma tão profunda seus rituais que não estão mais presentes os elementos fundamentais a serem transmitidos por aquele ritual. Um ritual penitencial que torna-se, por exemplo, um ritual de boa sorte. Um ritual de iniciação que não transmite mais os símbolos fundamentais daquela iniciação, mas se torna um mero discurso moralista.

4 – Um mestre budista que passa a ensinar como sendo boa conduta aquilo que as escrituras budistas consideram má conduta, como pensamento correto aquilo que as escrituras consideram ser pensamento incorreto, como meio de vida correto o que as escrituras afirmam ser meio de vida incorreto. Que afirma que uma determinada doutrina é budista sendo que tal doutrina, de fato, não consta nem no cânone de escrituras budistas, nem nos comentários dos exegetas tradicionais e que, inclusive, não pode ser deduzida a partir desses ensinamentos por qualquer método exegético racional. Todos aqueles que aderirem a esse mestre, tendo consciência do que fazem, ainda que previamente tenham tido vínculos tradicionais legítimos com o Budismo, rompem qualquer ligação verdadeira com a tradição budista.

5 – A introdução de elementos intelectuais estranhos em uma dada tradição que, pouco a pouco, faça com que os conceitos elementares desta comecem a ser compreendidos de forma equivocada. Por exemplo, de conceitos comunistas para se compreender a justiça cristã, de ideias revolucionárias para se compreender a busca por uma sociedade mais justa e civilizada da Maçonaria, de conceitos “New Age” para se compreender alguma doutrina budista, até que as ideias se tornem mescladas a tal ponto que uma evoque a outra automaticamente.

Quando se configuram tais situações ou outras de igual natureza, a Tradição subsistirá de maneira extraordinária, ou seja, fora dos meios normais para sua perpetuação.

VIII. Tradições vacantes

Um outro caso possível de desaparecimento de uma tradição ocorre quando os poucos detentores de uma determinada linhagem morrem sem transmiti-la a ninguém. Nestes casos a recuperação desta tradição só é possível se algum dos detentores da linhagem deixar por escrito o seu legado, e que tal legado contenha, ao menos, as bases fundamentais daquela tradição que permitam desenvolvimentos posteriores através de sua vivência e interpretação.

De toda forma, a recuperação e restauração de uma linhagem perdida desta maneira dependerá de uma série de fatores que estão muito além do controle e previsão humanos. Uma tradição que é passível de recuperação através de seus escritos, ou seja, existente em potência, mas não em ato, pode ser denominada de tradição vacante.

  1. Tradições inexistentes: cadeias rompidas e pseudo-tradições

Até agora tratamos de tradições reais que, por uma razão ou outra, são rompidas em um determinado momento. Agora trataremos das cadeias rompidas há tempos e das pseudo-tradições, ou tradições inexistentes, que conduzem muitas pessoas ao erro e a inumeráveis equívocos de interpretação em relação às tradições reais.

Depois de um tempo mais ou menos longo, uma tradição que foi rompida acaba por se tornar um simulacro, um espantalho que, apesar de aparentar ser real, nada mais tem de realmente vinculado à Tradição. Foi tradicional, não é mais. Neste caso, há um grave perigo para aqueles que, crendo nos sinais exteriores de continuidade (a detenção de documentos, a continuidade da posse de locais históricos vinculados àquela tradição, a imagem de venerabilidade construída em torno de pseudo-sucessores de avançada idade, o grande número de aderentes etc.), creem de boa-fé que os ensinamentos e os ritos ali praticados são as genuínas expressões daquela mesma tradição veneranda do passado, quando, na verdade, não passa de simulação.

A verificação da realidade de uma transmissão tradicional se dá através da cuidadosa análise doutrinária. As perguntas a serem feitas são: É a mesma doutrina? São os mesmos ritos? Houve adaptação? Se houve, como foi feita? Alterou elementos fundamentais?

Adaptações nos rituais, adequação a diferentes realidades, tempos, públicos etc., são muitas vezes necessárias e salutares, MAS, não pode haver alteração na essência.

“A Tradição não exclui a evolução nem o progresso; os rituais podem e devem ser alterados tantas vezes quantas sejam necessárias para adequar-se às condições variáveis de tempo e de lugar, mas, entenda-se, unicamente à medida em que estas alterações não afetem nenhum aspecto essencial. A mudança nos detalhes do ritual importa pouco desde que o ensinamento iniciático que deles se compreende não sofra nenhuma alteração.” (René Guénon. A Gnose, abril de 1910)

É óbvio que a análise desses aspectos doutrinários e ritualísticos é muito difícil para a maioria das pessoas que aderem a algum ensinamento que se pretende tradicional. Isso demonstra o quão grave é a situação e o quão difícil é a percepção dessa realidade de uma cadeia rompida ou de uma “ex tradição”.

O caso das pseudo-tradições é diferente do que falamos sobre o caso das cadeias rompidas. Uma pseudo-tradição é uma invenção, uma doutrina criada por um indivíduo ou um grupo que alega ter recebido uma “nova revelação” que contrasta com os elementos comuns da Tradição como um todo. De maneira geral, pseudo-tradições não têm quaisquer referências reais em uma cadeia de transmissão e, para suprir essa ausência, inventam suas próprias cadeias de transmissão misturando fantasias, personagens fictícios, doutrinas ilógicas, irracionais, sem embasamento filosófico e interpretações aberrantes do bom senso e de qualquer exegese séria.

As pseudo-tradições podem utilizar como “esqueleto” a alguma tradição real e existente (o Budismo ou Cristianismo, por exemplo) e, nesse “esqueleto”, ir construindo um tipo de boneco de retalhos com ideias vindas das mais diferentes fontes, ensinamentos desviados e até abertamente contraditórios àquela tradição real utilizada como estrutura. É assim que nascem as chamadas “novas religiões”, assim nasceram várias seitas desviadas do passado e também a totalidade das Ordens pseudo-esotéricas e pseudo-iniciáticas no mundo.

Em geral, ao serem indagados sobre as bases escriturísticas, históricas e os fundamentos de seus ensinamentos, apelam para o segredo, para registros reservados aos quais ninguém pode ter acesso (ninguém mesmo, uma vez que simplesmente não existem), para um tempo recuadíssimo e inverificável ou para o papel absolutamente sui-generis do fundador que, sem precisar se basear em nenhum conhecimento anterior, recebeu algo totalmente novo, especial, único, exclusivíssimo e sem precedentes. Aliás, é bem comum que esse fundador seja a “encarnação” (termo caro ao espiritualismo moderno) de alguma divindade, mestre iluminado etc.

No caso de seitas desviadas com muitos séculos, a completa falta de fundamento doutrinário vai sendo suprida com registros históricos, lendas hagiográficas, apelos à autoridade de sua respeitada “tradição” etc.

Frisemos que, nesse caso, estamos falando de um completo vazio e de uma pura e simples impossibilidade, não de algo que se perdeu ou foi rompido.

É absolutamente claro que essas pseudo-tradições nada têm de espiritualmente real a oferecer. Vendem fantasias, falsas consolações, sensações de poder e de conhecimento fictícios. Iludem a muitos que investem tempo e dinheiro para comprar “fumaça”, ou seja, títulos, graus, honrarias e segredos de polichinelo que só são valorizados pelos seus próprios confrades ou por tolos em relação ao conhecimento tradicional.

  1. Restauração das tradições

Com tudo que expusemos até agora, cremos ter deixado clara a complexidade do tema e a necessidade de profundo conhecimento para se proceder uma análise segura quando se trata de ensinamentos tradicionais.

Repetimos: restauração de uma tradição rompida ou vacante depende de uma série de fatores, dentre os quais a maioria encontra-se fora do controle e da previsibilidade humanas.

O restaurador de uma tradição não é um inovador, um criador, alguém “original” ou com grande senso comercial e tino para os negócios. Ele não fará com que uma tradição restaurada se torne hours concours ou um “produto” de grande aceitação mercadológica.

Da mesma forma, não é um sonhador, um visionário que vive em estado de êxtase ou que recebe ensinamentos através de vaporosas aparições. Ao contrário, precisa estar firmemente ancorado em dados da realidade objetiva, em conhecimento efetivo, real e demonstrável da tradição que restaura. Suas experiências interiores pessoais não serão utilizadas para demonstrar a verdade da doutrina que ensina. Ao contrário, é sua própria despretensão em arvorar-se como “medida da verdade” e seu constante recurso às fontes da tradição que serão os selos de sua autenticidade.

Em outras palavras, na Tradição, as particularidades e idiossincrasias do transmissor não contam quase nada. Só sua transfiguração como veículo da Tradição é que importa. As verdades são apresentadas pela Tradição, não pela opinião particular do transmissor.

Um falso transmissor dá sua opinião pessoal e diz que aquela é a posição da doutrina que diz representar. Um verdadeiro transmissor demonstra a doutrina tradicional fazendo referência às fontes e conforma sua opinião àquele ensinamento.

  1. Conclusão

De acordo com as doutrinas tradicionais encontramo-nos em um período de profunda decadência espiritual.  As diversas tradições fazem referência a esse período de decadência por nomes diferentes: Kali-yuga na tradição hindu, Mòfa/Mappou na tradição budista Mahayana, Idade de Aço na tradição greco-romana (Hesíodo), Dushama (Dukhma)/Dushama-Dushama (Dukhma-dukhma) no Jainismo, Grande Tribulação (Thlipsis megáli) e Fim dos Tempos na tradição cristã, fitna e malahim no Islam Sunita, ghaybah no Islam Shiah etc. Essa era de decadência é marcada pela confusão, pelo obscurecimento dos centros tradicionais e pela deturpação dos ritos corretos. Obviamente que neste período a transmissão correta de toda verdadeira tradição é dificultada, e que a restauração e preservação se dão frequentemente por meios não convencionais ou ordinários.

Tradições rompidas, perdidas e pseudo-tradições estão por toda parte. Devido a todos esses fatores, a compreensão da própria natureza do correto e incorreto, do certo e do duvidoso se torna nublada.

O presente texto, um mero sumário de ideias extremamente simplificadas e resumidas, serve como um alerta àqueles que querem seguir os ensinamentos tradicionais e, dessa maneira, estar ligados à Fonte Suprema da Tradição, aquela Verdade Metafísica que está acima de qualquer categoria e classificação humana.

Se conseguirmos que uns poucos leitores tenham a atenção despertada por essas poucas páginas, já teremos plenamente atingido nosso objetivo.